Frei Almir Ribeiro Guimarães
Nunca acabaremos de meditar nas riquezas da Eucaristia. Trata-se do grande dom do Senhor, do memorial de sua paixão, morte e ressurreição. Francisco, em seu Testamento, assim se exprime: “Do Altíssimo Filho de Deus nada enxergo corporalmente neste mundo senão o seu santíssimo Corpo e Sangue que eles (os sacerdotes) consagram e somente eles administram aos outros” (Test 10). Deve-se dizer que Francisco não tem propriamente uma doutrina própria a respeito da Eucaristia. Notamos, no entanto, uma atenção doutrinal e devocional muito grande de Francisco pelo mistério da piedade ou unidade e, consequentemente, pelos sacerdotes, ministros da Eucaristia.
A situação no tempo de Francisco
No final do século XII e inícios do século XIII constatamos que a Eucaristia, quanto ao seu aspecto celebrativo, conhece uma certa decadência: o povo não compreende a missa, não participa da comunhão e esta vai se tornando mais rara. Ao mesmo tempo a autoridade eclesial se empenha em restaurar a prática da Eucaristia e, sobretudo em ambientes místicos, vai surgindo uma devoção ao Santíssimo Sacramento. As determinações novas de incentivo à participação na Eucaristia estão registradas nas decisões do Concílio do Latrão IV, em 1215. Há também a questão das heresias da época que atacavam a doutrina ortodoxa da Eucaristia. Diziam que a Eucaristia celebrada por sacerdotes indignos era inválida. Formulavam elas também teorias errôneas a respeito da presença real de Cristo. Francisco adotará a fé da Igreja. Cercará a Eucaristia de todo respeito e adoração.
Eucaristia, como dom e expressão de amor/entrega
Ninguém atinge a finalidade de sua vida sem uma profunda vivência do amor. Belo corpo, recursos financeiros, sucessos e relacionamentos não enchem o homem de plenitude. Somos incompletos quando não chegamos a viver o amor que é dom das entranhas. Todos nós que vivemos nesta sociedade de consumo, de interesse, sabemos quanto é difícil o dar-se totalmente no jogo do amor. Há uma avidez de posse, de bens, de gozo. Tudo é calculado em vista do lucro e do beneficio. Ora, o amor é exatamente o contrário. É esforço de saída de si mesmo, de morte a seus próprios interesses para que outros possam ser mais profundamente eles mesmos e assim felizes. O egoísmo mata e o amor dá vida. O amor esconde em si misteriosa força.
O homem tem necessidade de alimento, lazer, descanso, bens e posses. Precisa de condições mínimas vitais para viver e tem direito de conseguir o necessário para uma vida digna. Mas não pode contentar-se com bens materiais. Necessita de toda Palavra que sai da boca de Deus. Precisa de alimento e fortaleza que vêm do Senhor. Em todos os bens o homem vê um presente e um dom do Supremo Doador. O amor é a única coisa necessária para o homem.
A Eucaristia como dom
Tudo na tarde da Ceia era dom. Tudo se revestia de profundo amor. O Mestre lavava os pés dos seus, antecipando o momento em que haveria de ser o Servo suspenso no alto da cruz, purificando o homem de toda mancha com a água e o sangue de seu peito rasgado e aberto. Não se podia detectar interesses particulares e busca de si próprio. Tudo é abertura, dom, serviço, amor. Jesus servia, era empregado. Colocava-se à disposição. Sendo de condição divina não hesitara em tomar a condição humana, tomando-se obediente até à morte e morte de cruz. Tomara o último lugar no banquete da vida.
Cristo inaugurou o tempo do amor, do dom, da partilha. Não tinha tempo para si mesmo. Através de parábolas, encontros e confrontos, inculcou a necessidade da criação de uma terra de fraternidade. Veio trazer um amor divino, não mera filantropia. O episódio do bom samaritano, a compreensão amorosa para com a mulher adúltera, o ensinamento e o exemplo a respeito do perdão, o empenho em exaltar os pequenos, a compaixão para com a viúva de Naim, o mandamento do amor e sua paixão e morte por amor atestam claramente que Jesus é o mensageiro e encarnação do dom/ amor.
No momento de sua passagem, de sua páscoa, na ceia derradeira, toma o pão. Diz que esse pão é seu corpo e sua vida, é dom de si para a vida de muitos. Diz que o cálice é seu sangue vertido para o bem de todos. Junta o pão e o cálice a seu corpo e à sua vida. Mandou que os seus repetissem essa ceia de amor que estava para sempre vinculada ao sacrifício amoroso da cruz. Fazemos hoje a memória de Jesus na Missa e ele se torna realmente presente.
Os que são de Cristo, os discípulos do Senhor vivem cotidianamente vida de partilha, dom, entrega para a vida de muitos. As celebrações eucarísticas de que participam exprimem sua vida-para-os-outros e para Deus. Na Eucaristia os cristãos se encontram juntos com o Senhor que se toma pão e sacrifício amoroso. Renovam seu compromisso de amor, alimentam-se da força de Cristo, rendem graças ao Deus Altíssimo pelo dom de Jesus, unem-se ao Mestre no momento em que renova seu sacrifício de modo incruento. Na Eucaristia tudo é dom. Esse mesmo Cristo que se oferece na missa continua presente entre os seus em suas capelinhas e igrejinhas oferecendo-se constantemente ao Pai e esperando a homenagem do coração de
seus fiéis.
São Francisco e a Eucaristia
Já dissemos anteriormente que São Francisco teve especial carinho para com a Eucaristia. Francisco traça um paralelo entre a Encarnação do Verbo no seio de Maria e sua vinda sobre os altares: “Ele se humilha todos os dias, tal como na hora em que descendo do seu trono real para o seio da Virgem vem diariamente a nós sob aparência humilde; todos os dias desce do seio do Pai sobre o altar, nas mãos do sacerdote” (Adm 1,16-18). Nestes versículos Francisco realça o aspecto da humildade, do abaixamento.
Francisco tem consciência de que, do Altíssimo, nada se pode ter na terra a não ser seu Corpo e Sangue. Podemos “ver” o Senhor. E os sacerdotes é que são ministros dessa presença. Por isso, o Poverello tinha especial carinho e respeito pelos sacerdotes, mesmo pelos pecadores. Contra as heresias Francisco afirmava, com a Igreja, que a presença de Cristo na Eucaristia não depende da santidade do ministro. O Santo tem uma visão de fé.
Evidentemente Francisco quer que os clérigos tenham santidade de vida ao celebrarem a Eucaristia e cuidem delicadamente de tudo o que serve ao altar. Limitemo-nos aqui a uma citação da Carta a todos os clérigos: “Todos aqueles que administram tão sacrossantos mistérios e especialmente aqueles que os ministram sem a reta discrição, considerem no seu íntimo como são vulgares os cálices, corporais e panos de linho sobre os quais é oferecido em sacrifício o corpo e o sangue de Nosso Senhor. E muitos o guardam em lugares bem comuns e o levam de modo lamentável (pela rua) e o recebem indignamente e o ministram indiscriminadamente” (Carta aos Clérigos 4-5). Na Carta aos Custódios (7) Francisco lembra: “E quando o sacerdote o oferecer em sacrifício sobre o altar, e aonde quer que o leve, todo o povo dobre os joelhos e renda louvor, honra e glória ao Senhor Deus”.
Celano descreve a devoção de Francisco pela Eucaristia na linha da manifestação do amor divino. “Ficava estupefato diante de tão amável condescendência e de tão digna caridade… achava que era um desprezo muito grande não assistir pelo menos a uma missa cada dia, se pudesse… comungava muitas vezes ….. (cf. 2Cel201).
Curiosamente Francisco solicita que os frades participem de uma mesma missa, mesmo sendo sacerdotes. Parece mostrar o caráter comunitário da Eucaristia: “Advirto ainda os meus irmãos e exorto-os que, nos lugares onde moram, seja celebrada uma só missa por dia, segundo a forma da santa Igreja. E se houver vários sacerdotes no lugar, contente-se um sacerdote, por amor à caridade, com ouvir a missa do outro” (Carta a toda Ordem 30-31).
É também neste escrito que encontramos palavras cheias de força e de respeito pela Eucaristia. Francisco mostra-se extasiado: “Pasme o homem todo, estremeça a terra inteira, rejubile o céu em altas vozes quando, sobre o altar, estiver nas mãos do sacerdote o Cristo, Filho de Deus vivo! Ó grandeza maravilhosa, ó admirável condescendência! Ó humildade sublime, ó humilde sublimidade! O Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, se humilha a ponto de se esconder, para nosso bem, na modesta aparência de pão … Nada de vós retenhais para vós mesmos, para que totalmente vos receba quem totalmente se vos dá”! (Carta à Ordem 26-29).
Dentro da ótica da pobreza de Francisco entende-se esta sua última afirmação: dar tudo a Cristo já que ele se dá inteiramente a nós. Somos agraciados de todos os dons e bens do Senhor. Estamos cobertos dos favores do Senhor. E que favor maior do que este que é Cristo? Ele se entregou totalmente no gesto da paixão e morte que é atualizado e vivenciado novamente na Eucaristia. Por isso a atitude do cristão diante do mistério da presença do Senhor é de entrega amorosa. Não pode o homem nada reter para si diante daquele que se entregou totalmente. Estamos em pleno coração do mistério do dom e do amor. Realmente a Eucaristia é mistério de amor infinito!
Encontros com Francisco de Assis, Roteiros para círculos de estudos – Editora Vozes
Fonte: franciscanos.org.br