São Boaventura e a primazia do Amor

Em catequese de 2010, Papa Bento XVI fala sobre o Doutor Seráfico, cuja festa comemoramos hoje
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Queridos irmãos e irmãs

Esta manhã, continuando a reflexão de quarta-feira passada, gostaria de aprofundar convosco outros aspectos da doutrina de São Boaventura de Bagnoregio. Ele é um teólogo eminente, que merece ser posto ao lado de outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo, São Tomás de Aquino. Ambos perscrutaram os mistérios da Revelação, valorizando os recursos da razão humana, naquele diálogo fecundo entre fé e razão que caracteriza a Idade Média cristã, fazendo dela uma época de grande vivacidade intelectual, e também de fé e de renovação eclesial, muitas vezes não suficientemente evidenciada. Eles são irmanados por outras analogias:  tanto Boaventura, franciscano, como Tomás, dominicano, pertenciam às Ordens Mendicantes que, com o seu vigor espiritual, como recordei em catequeses precedentes, renovaram no século XIII a Igreja inteira e atraíram muitos seguidores. Ambos serviram a Igreja com diligência, com paixão e com amor, a ponto de terem sido convidados a participar no Concílio Ecuménico de Lião em 1274, o mesmo ano em que vieram a falecer:  Tomás, enquanto ia a Lião, Boaventura durante a realização do mesmo Concílio. Também na Praça de São Pedro as imagens dos dois Santos são paralelas, colocadas precisamente no início da Colunata, a partir da fachada da Basílica Vaticana:  uma na Ala da esquerda, e a outra na Ala da direita. Não obstante todos estes aspectos, podemos ver nos dois grandes Santos duas abordagens diversas da pesquisa filosófica e teológica, que mostram a originalidade e a profundidade de pensamento de um e do outro. Gostaria de mencionar algumas destas diferenças.

Uma primeira diferença diz respeito ao conceito de teologia. Ambos os doutores perguntam se a teologia é uma ciência prática ou uma ciência teórica, especulativa. São Tomás reflecte sobre duas possíveis respostas contrastantes. A primeira diz:  a teologia é reflexão sobre a fé, e a finalidade da fé é que homem se torne bom, viva segundo a vontade de Deus. Portanto, a finalidade da teologia deveria ser a de guiar pelo caminho recto, bom; por conseguinte, no fundo, ela é uma ciência prática. A outra posição diz:  a teologia procura conhecer Deus. Nós somos obra de Deus; Deus está acima do nosso agir. Deus realiza em nós o agir justo. Por conseguinte, trata-se substancialmente não do nosso fazer, mas de conhecer Deus, não do nosso agir. A conclusão de São Tomás é:  a teologia implica ambos os aspectos:  é teórica, procura conhecer Deus cada vez mais, e é prática:  procura orientar a nossa vida para o bem. Mas há um primado do conhecimento:  sobretudo, temos que conhecer Deus, depois vem o agir segundo Deus (cf. Summa Theologiae, ia, q. 1, art. 4). Este primado do conhecimento em relação à prática é significativo para a orientação fundamental de São Tomás.

A resposta de São Boaventura é muito semelhante, mas os matizes são diferentes. São Boaventura conhece os mesmos argumentos em ambas as direcções, como São Tomás, mas para responder à pergunta se a teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma distinção tríplice – portanto, amplia a alternativa entre teórico (primado do conhecimento) e prático (primado da prática), acrescentando uma terceira atitude, que chama “sapiencial” e afirmando que a sabedoria abrange ambos os aspectos. E depois, continua:  a sabedoria procura a contemplação (como a mais elevada forma do conhecimento) e tem como intenção “ut boni fiamus” – que nos tornemos bons, sobretudo isto:  tornar-nos bons (cf. Breviloquium, Prologus, 5). Depois, acrescenta:  “A fé está no intelecto, de tal modo que provoca o afecto. Por exemplo:  saber que Cristo morreu “por nós” não permanece conhecimento, mas torna-se necessariamente afecto, amor” (Proemium in I Sent., q. 3).

A sua defesa da teologia, ou seja, da reflexão racional e metódica da fé, move-se na mesma linha. São Boaventura enumera alguns argumentos contra a prática da teologia, talvez difundidos também entre alguns dos frades franciscanos e presentes inclusive no nosso tempo:  a razão esvaziaria a fé, seria uma atitude violenta em relação à palavra de Deus, temos que ouvir e não analisar a palavra de Deus (cf. Carta de São Francisco de Assis a Santo António de Pádua). A estes argumentos contra a teologia, que demonstram os perigos existentes na própria teologia, o Santo responde:  é verdade que existe um modo arrogante de fazer teologia, uma soberba da razão, que se põe acima da palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o trabalho racional da teologia verdadeira e boa tem outra origem, não a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez melhor e sempre mais o amado; a verdadeira teologia não empenha a razão e sua busca motivada pela soberba, “sed propter amorem eius cui assentit” – “motivada pelo amor daquele, a quem deu o seu consentimento” (Proemium in I Sent., q. 2), e que conhecer melhor o amado:  esta é a intenção fundamental da teologia. Portanto, no final para São Boaventura é determinante o primado do amor.

Por conseguinte, São Tomás e São Boaventura definem de modo diferente o destino último do homem, a sua plena felicidade:  para São Tomás o fim supremo ao qual se dirige nosso desejo é:  ver Deus. Neste simples gesto de ver Deus todos os problemas encontram solução:  estamos felizes, nada mais é necessário.

Para São Boaventura, o destino último do homem é outro:  amar Deus, o encontrar-se e o unir-se do seu e do nosso amor. Esta é para ele a definição mais adequada da nossa felicidade.

Nesta linha, poderíamos dizer também que para São Tomás a categoria mais elevada é a verdade, enquanto para São Boaventura é o bem. Seria errado ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambos, a verdade é também o bem, e o bem é também a verdade; ver Deus é amar, e amar é ver. Portanto, trata-se de aspectos diferentes de uma visão fundamentalmente comum. Ambos os aspectos formaram diferentes tradições e diversas espiritualidades, e assim mostraram a fecundidade da fé, uma só na diversidade das suas expressões.

Voltemos a São Boaventura. É evidente que o aspecto específico da sua teologia, do qual só dei um exemplo, se explica a partir do carisma franciscano:  o Pobrezinho de Assis, para além dos debates intelectuais do seu tempo, tinha mostrado com toda a sua vida o primado do amor; era um ícone vivo e apaixonado de Cristo e assim, na sua época, tornou presente a figura do Senhor não convenceu os seus contemporâneos com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as obras de São Boaventura, precisamente também as obras científicas, escolares, vê-se e encontra-se esta inspiração franciscana; ou seja, observa-se que ele pensa a partir do encontro com o Pobrezinho de Assis. No entanto, para compreender a elaboração concreta do tema “primado do amor”, temos que ter presente mais uma fonte:  os escritos do chamado Pseudodionísio, um teólogo sírio do século VI, que se escondeu sob o pseudónimo de Dionísio, o Areopagita, referindo-se com este nome a uma figura dos Actos dos Apóstolos (cf. 17, 34). Este teólogo tinha criado uma teologia litúrgica e uma teologia mística, e falara amplamente das diversas ordens dos anjos. Os seus escritos foram traduzidos em latim no século IX; na época de São Boaventura –  estamos no século XIII – surgia uma nova tradição, que despertou o interesse do Santo e dos outros teólogos do seu século. Duas coisas chamavam a atenção de São Boaventura de modo particular: 

1. O Pseudodionísio fala de nove ordens dos anjos, cujos nomes tinha encontrado na Escritura e depois disposto à sua maneira, desde os anjos simples até aos serafins. São Boaventura interpreta estas ordens dos anjos como degraus na aproximação da criatura a Deus. Assim eles podem representar o caminho humano, a elevação rumo à comunhão com Deus. Para São Boaventura não há qualquer dúvida:  São Francisco de Assis pertencia à ordem seráfica, à ordem suprema, ao coro dos serafins, ou seja:  era puro fogo de amor. E assim deveriam ser os franciscanos. Mas São Boaventura sabia bem que este último grau de aproximação a Deus não pode ser inserido num ordenamento jurídico, mas é sempre um dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da Ordem franciscana é mais modesta, mais realista, porém deve ajudar os membros a aproximar-se cada vez mais de uma existência seráfica de amor puro. Na quarta-feira passada, falei sobre esta síntese entre realismo sóbrio e radicalidade evangélica no pensamento e no agir de São Boaventura.

2. Contudo, São Boaventura encontrou nos escritos do Pseudodionísio outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razão e o coração, é a última categoria do conhecimento, o Pseudodionísio dá mais um passo:  na escalada rumo a Deus pode-se chegar a um ponto em que a razão já não vê. Mas na noite do intelecto, o amor ainda vê – vê aquilo que permanece inacessível à razão. O amor estende-se além da razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. São Boaventura sentia-a fascinado por esta visão, que se encontrava com a sua espiritualidade franciscana. Precisamente na noite obscura da Cruz aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão já não vê, o amor vê. As palavras conclusivas do seu “Itinerário da mente em Deus”, a uma leitura superficial podem parecer como expressão exagerada de uma devoção sem conteúdo; por outro lado, lidas à luz da teologia da Cruz de São Boaventura, elas são uma expressão límpida e realista da espiritualidade franciscana:  “Se agora desejas saber como isto acontece (ou seja, a escalada para Deus), interroga a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; o gemido da oração, não o estudo da letra; …não a luz, mas o fogo, que tudo inflama e transporta em Deus” (VII, 6). Tudo isto não é anti-intelectual e não é anti-racional:  supõe o caminho da razão, mas transcende-o no amor de Cristo crucificado. Com esta transformação da mística do Pseudodionísio, São Boaventura coloca-se nos primórdios de uma corrente mística, que elevou e purificou em grande medida a mente humana:  é um ápice na história do espírito humano.

Esta teologia da Cruz, nascida do encontro entre a teologia do Pseudodionísio e a espiritualidade franciscana, não nos deve fazer esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis também o amor pela criação, a alegria pela beleza da criação de Deus. Cito nesta altura uma frase do primeiro capítulo do “Itinerário”:  “Quem… não vê os inúmeros esplendores das criaturas, é cego; aquele que não desperta com tantas vezes, é surdo; quem não louva a Deus por todas estas maravilhas, é mudo; aquele que de tantos sinais não se eleva ao primeiro princípio, é estulto” (I, 15). Toda a criação fala em voz alta de Deus, do Deus bom e belo, do seu amor.

Portanto, toda a nossa vida é para São Boaventura um “itinerário”, uma peregrinação – uma escalada rumo a Deus. Mas só com as nossas forças, não podemos elevar-nos à altura de Deus. O próprio Deus deve ajudar-nos, deve “puxar-nos” para o alto. Por isso, é necessária a oração. A oração – como diz o Santo – é a mãe e a origem da elevação – “sursum actio”, acção que  nos  leva  para  o  alto – diz Boaventura. Por isso, concluo com a prece, com a qual ele começa o seu “Itinerário”:  “Portanto, oremos e digamos ao nosso Senhor Deus:  “Conduza-me, Senhor, pela tua via, e eu caminharei na tua verdade. Alegre-se o meu coração no temor do teu nome”” (I, 1).

Fonte: vatican.va

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