A Paixão de Cristo segundo São Pedro de Alcântara

Do livro "Tratado da Meditação e Oração"
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Aqui é de notar que seis coisas se hão de meditar na Paixão de Cristo: a grandeza de suas dores, para nos compadecermos delas. A gravidade do nosso pecado, que é a causa, para aborrecê-lo. A grandeza do benefício, para agradecê-lo. A excelência da divina bondade e caridade,

que ali se descobre, para amá-la. A conveniência do mistério, para nos maravilharmos dele. E a multidão das virtudes de Cristo, que ali resplandecem, para imitá-las. Pois conforme a isto, quando vamos meditando devemos ir inclinando o nosso coração, umas vezes à compaixão das dores de Cristo, pois foram as maiores do mundo, assim pela delicadeza de seu corpo, como pela grandeza de seu amor, como também por padecer sem nenhuma maneira de consolação, como noutra parte está declarado. Outras vezes devemos ter respeito a tirar daqui motivos de dor de nossos pecados, considerando terem eles sido a causa de que Ele padecesse tantos e tão graves dores como padeceu. Outras vezes devemos tirar daqui motivos de amor e agradecimento, considerando a grandeza do amor que Ele por aqui nos revelou e a grandeza do benefício que nos fez redimindo-nos tão copiosamente, com tanta custa sua e tanto proveito nosso.

Outras vezes devemos levantar os olhos a pensar a conveniência do meio que Deus tomou para curar a nossa miséria, isto é, para satisfazer por nossas dívidas, para socorrer nossas necessidades, para nos merecer a sua graça e humilhar a nossa soberba e induzir-nos ao menosprezo do mundo, ao amor da cruz, da pobreza, da asperidade, das injúrias e de todas os outros trabalhos virtuosos e honestos.

Outras vezes devemos pôr os olhos nos exemplos de virtudes que em sua sacratíssima vida e morte resplandecem, em sua mansidão, paciência, obediência, misericórdia, pobreza, aspereza, caridade, humildade, benignidade, modéstia e em todas as outras virtudes, que em todas as suas obras e palavras, mais do que as estrelas no céu, refulgem, para imitar algo do que nele vemos, porque não tenhamos ocioso o espírito e graça que dele para isto recebemos, e assim caminhemos a Ele por Ele. Esta é a mais alta, a mais proveitosa maneira que existe de meditar a Paixão de Cristo, que é por via de imitação, para que pela imitação tenhamos à transformação, e assim já possamos dizer como o Apóstolo: Vivo eu, já não eu, mas vive em mim Cristo

Demais disto, convém em todos estes passos ter Cristo diante dos olhos presente, fazer de conta que o temos diante quando Ele padece e ter conta, não só com a história de sua Paixão, senão também com todas as circunstâncias dela, especialmente com estas quatro: Quem padece? Por quem padece? Como padece? Por que causa padece? Quem padece? Deus Todo-Poderoso, infinito, imenso, etc. Por quem padece? Pela mais ingrata e desconhecida criatura do mundo. Como padece? Com grandíssima humildade, caridade, benignidade, mansidão, misericórdia, paciência, modéstia, te. Por que causa padece? Não por algum interesse seu, tem merecimento nosso, mas pelas sós entranhas de sua infinita piedade e misericórdia. Além disto, não se contente o homem com olhar o que por fora Ele padece, porém muito mais o que Ele padece por dentro, porque muito mais há que contemplar na alma de Cristo do que no corpo de Cristo, assim no sentimento de suas dores, como nos outros afetos e considerações que nela havia.

I – A Ceia do Senhor

Considera, pois, ó minha alma, nesta ceia o teu doce e benigno Jesus e olha o exemplo inestimável de humildade que Ele aqui te dá, levantando-se da mesa e lavando os pés dos seus discípulos. Ó bom Jesus! Que é isso que fazes? Ó doce Jesus! Por que tanto se humilha a tua majestade? Que sentirias, alma minha, se visses ali a Deus ajoelhado ante os pés dos homens e ante os pés de Judas? Ó cruel, como te não abranda o coração essa tão grande humildade? Como não te rompem as entranhas essa tamanha mansidão? Será possível que tenhas ordenado vender esse mansíssimo Cordeiro? Será possível que não te tenhas agora compungido com este exemplo? Ó brancas e belas mãos! Como podeis tocar pés tão sujos e abomináveis? Ó mãos puríssimas! Como não tendes asco de lavar os pés enlameados

nos caminhos e tratos do vosso sangue? Ó apóstolos bem-aventurados! Como não tremeis vendo essa tão grande humildade? Pedro, que fazes? Porventura consentirás que o Senhor da Majestade te lave os pés? Maravilhado e atônito, S. Pedro, como visse o Senhor ajoelhado diante dele, começou a dizer: Tu, Senhor, a mim me lavas os pés? Não és o Filho de Deus vivo? Não és o Criador do mundo, a beleza do céu, o paraíso dos anjos, o remédio dos homens, o resplendor da glória do Pai, a fonte da sabedoria de Deus nas alturas? Então me queres a mim lavar os pés? Tu, Senhor, de tanta majestade e glória, queres ocupar-te em ofício de tamanha baixeza?

Considera também como, em acabando de lavar os pés, Ele os alimpa com aquela sagrada toalha de que estava cingido; sobe mais acima com os olhos da alma e verás ali representado o mistério da nossa Redenção. Olha como aquela toalha recolheu em si toda a imundície dos pés sujos, eles assim ficaram limpos, a toalha ficaria toda manchada e suja depois de feito este ofício. Que coisa mais suja do que o homem concebido em pecado e que coisa mais limpa e mais bela do que Cristo concebido do Espírito Santo? Alvo e corado é meu amado (diz a Esposa), e escolhido entre milhares. Pois este tão belo e limpo quis receber em si todas as manchas e fealdades de nossas almas, e, deixando-as limpas e livres delas, ficou (como o vês) na cruz manchado e afetado com elas.

Depois disto, considera aquelas palavras com que o Salvador deu fim a esta história, dizendo: “Exemplo vos dei para que como Eu o fiz assim o façais”. As quais palavras não só se hão de referir a este passo e exemplo de humildade, senão também a todas as obras e vida de Cristo, porque ela é um perfeitíssimo exemplar de todas as virtudes, especialmente da que neste lugar se nos representa.

Da instituição do Santíssimo Sacramento

Para entender alguma coisa deste mistério hás de pressupor que nenhuma língua criada pode declarar a grandeza do amor que Cristo tem à sua Esposa, a Igreja; e, por conseguinte, a cada uma das almas que estão em graça, porque cada uma delas também é sua esposa. Ora, querendo este Esposo dulcíssimo partir-se desta vida e ausentar-se de sua Esposa, a Igreja (para que esta ausência não lhe fosse causa de esquecimento), deixou-lhe por memorial este Santíssimo Sacramento (em que ficava Ele mesmo), não querendo que entre Ele e ela houvesse outro penhor que despertasse a sua memória, senão só Ele. Queria também o Esposo nesta ausência tão longa deixar a sua Esposa, companhia para que não ficasse só; e deixou-lhe a deste sacramento, onde fica Ele mesmo, que era a melhor companhia que lhe podia deixar. Queria também então ir padecer morte pela Esposa, redimi-la e enriquecê-la com o preço de seu sangue. E para que ela pudesse (quando quisesse) gozar deste tesouro, deixou-lhe as chaves dele neste Sacramento; porque (como diz S. Crisóstomo ), todas as vezes que nos chegamos a ele, devemos pensar que chegamos a por a boca no lado de Cristo, bebemos daquele precioso sangue, e nos fazemos participantes deste.

Desejava, outrossim, este celestial esposo ser amado de sua esposa com grande amor e para isto ordenou este misterioso bocado, com tais palavras consagrado, que quem dignamente o recebe logo é tocado e ferido deste amor.

Queria também assegurá-la, e dar-lhe penhores daquela bem-aventurada herança da glória, para que, com a esperança passasse alegremente por todos os outros trabalhos e asperezas desta vida. Pois para que a esposa tivesse certa e segura a esperança deste bem, deixou-lhe cá em penhor este tesouro inefável que vale tanto como tudo o que lá se espera, para que ela não desconfiasse de que Deus se lhe dará na glória, onde eia viverá em espírito, pois não se lhe negou neste vale de lágrimas, onde ela vive em carne.

Queria também na hora de sua morte fazer testamento e deixar à Esposa alguma doação assinalada para seu remédio e deixou-lhe esta, que era a mais preciosa e proveitosa que lhe pudesse deixar, pois nela se deixa a Deus. Queria, finalmente, deixar às nossas almas suficiente provisão e alimento com que vivessem, porque não tem a alma menor necessidade de seu próprio alimento para viver vida espiritual que o corpo do seu para a vida corporal E para isto ordenou este tão sábio médico (o qual também tinha tomado o pulso da nossa fraqueza) este sacramento, por isso o ordena em espécie de alimento, para que a mesma espécie em que o instituiu nos declarasse o efeito que obrava e a necessidade que nossas almas dele tinham, não menor do que a que os corpos têm do seu próprio manjar .

II – A Agonia (terça-feira)

Considera, pois, primeiramente como, acabada aquela misteriosa Ceia, foi-se o Senhor com seus discípulos ao Monte Olivete a fazer oração antes que entrasse na batalha de sua Paixão, para nos ensinar como em todos os trabalhos e tentações desta vida temos sempre de recorrer à oração como a uma sagrada âncora, por cuja virtude, ou nos será tirada a carga da tribulação, ou se nos darão forças para levá-la, que é outra graça maior. Para companhia deste caminho tomou Ele consigo aqueles três mais amados discípulos, S. Pedro, S. Tiago e S. João, os quais haviam sido testemunhas de sua gloriosa transfiguração, para que eles mesmos vissem quão diferente figura tomava Ele agora por amor dos homens, Ele que tão glorioso se lhes havia mostrado naquela visão. E para que entendessem não serem menores os trabalhos interiores de sua alma que os que por fora começava a revelar, disse-lhes aquelas tão dolorosas palavras: “Triste está minha alma até à morte. Esperai-me aqui, e velai comigo” Acabadas estas palavras, apartou-se o Senhor dos discípulos coisa de um tiro de pedra, e, prostrado em terra com grandíssima reverência, começou a sua oração, dizendo: Pai, se é possível trespassa de mim este cálice, mas não se faça como eu quero, senão como tu queres”. E, feita esta oração três vezes, à terceira foi posto em tão grande agonia, que começou a suar gotas de sangue, que iam por todo o seu sagrado Corpo fio a fio até cair em terra. Considera, pois, o Senhor neste passo tão doloroso, olha como, representando-se-lhe ali todos os tormentos que Ele havia de padecer, apreendendo perfeitissimamente tão cruéis dores como se preparavam para o mais delicado dos corpos, pondo-se-lhe diante todos os pecados do mundo (pelos quais padecia) e o desagradecimento de tanta almas, que não haviam de reconhecer este benefício, nem se aproveitar de tão grande e custoso remédio, foi sua alma em tanta maneira angustiada, seus sentidos e carne delicadíssima tão turbados, que todas as forças e elementos de seu corpo se destemperaram, e a carne bendita abriu-se por todas as partes e deu lugar a que o sangue manasse por toda ela em tanta abundância, que corresse até a terra. E, se tal estava a carne, que só de ricochete padecia essas dores, que tal estaria a alma, que diretamente as padecia? Olha depois como, acabada a oração, chegou aquele falso amigo com aquela infernal companhia, renunciado já o ofício do apostolado e feito chefe e capitão do exército de Satanás. Olha quão sem pejo se adiantou ele primeiro que todos, e, chegado ao bom Mestre, o vendeu com beijo de falsa paz. Naquela hora disse o Senhor aos que o vinham prender:

“Assim como o ladrão, saístes a mim com espadas e lanças; e, havendo eu estado convosco cada dia no templo, não estendestes as mãos sobre mim; mas esta é a vossa hora e a do poder das trevas” Este é um mistério de grande admiração. Que coisa de maior espanto do que ver o Filho de Deus tomar imagem, não somente de pecador, senão também de condenado? “Esta (diz Ele) é a vossa hora e a do poder das trevas”. Das quais palavras se infere que por aquela hora foi aquele inocentíssimo Cordeiro entregue em poder dos príncipes das trevas, que são os demônios, para que por meio de seus ministros executassem nele todos os tormentos e crueldades que quisessem. Pensa, pois, agora até onde por ti se abaixou aquela Alteza Divina, pois chegou ao extremo de todos os males, que é ser entregue em poder dos demônios. E porque a pena que teus pecados mereciam era esta, Ele quis submeter-se a esta pena para que ficasses livre dela.

Ditas essas palavras, arremeteu logo toda aquela alcatéia de lobos famintos contra aquele manso Cordeiro, e uns o arrebatavam por uma parte, outros por outra; cada um como podia. Oh! Quão desumanamente o tratariam, quantas descortesias lhe diriam, quantos golpes e puxões lhe dariam, que de gritos e vozes alçariam, como costumam fazer os vencedores quando se vêem já com a presa! Tomam aquelas santas mãos, que pouco antes haviam obrado tantas maravilhas, atam-nas mui fortemente com uns laços corrediços até lhe esfolar a pele dos braços e até fazer-lhe rebentar o sangue e assim o levam atado pelas ruas públicas com grande ignomínia. Olha-o muito bem qual vai por este caminho desamparado de seus discípulos, acompanhado de seus inimigos, a passo corrido, de fôlego acelerado, de cor mudada e de rosto já afogueado e enrubescido com a pressa do caminhar. E contempla, em tal mau tratamento de sua pessoa, tanta serenidade em seu rosto, tanta gravidade em seus olhos e aquele semblante divino que no meio de todas as descortesias do mundo nunca pôde ser obscurecido.

Depois podes ir com o Senhor à casa de Anás, e olha como ali, respondendo o Senhor cortesmente à pergunta que o pontífice lhe fez sobre seus discípulos e doutrina, um daqueles malvados, que presentes estavam, deu-lhe uma grande bofetada no rosto, dizendo: “Assim respondes ao pontífice? Ao que o Salvador benignamente respondeu: Se mal falei, mostra-me em quê; e, se bem, por que me feres?” Olha, pois, aqui, ó minha alma, não somente a mansidão desta resposta, mas também aquele divino rosto marcado e corado com a força do golpe, aquela modéstia de olhos tão serenos e tão sem turbação naquela afronta e aquela alma santíssima no interior tão humilde e tão preparada para virar a outra face, se o verdugo o pedisse.

III – (quarta-feira) Neste dia pensarás na apresentação do Senhor ante o Pontífice Caifás, nos trabalhos daquela noite, na negação de S. Pedro e açoites na coluna.

Primeiramente considera como da primeira casa de Anás levam o Senhor à do Pontífice Caifás, onde será razão que o vás acompanhando, e aí verás eclipsada o sol de justiça e cuspido aquele divino rosto em que desejam olhar os anjos. Porque, como o Salvador, conjurado pelo nome do Padre a dizer quem era, respondesse a esta pergunta o que convinha, aqueles que tão indignos eram de tão alta resposta, cegando-se com o brilho de tamanha luz, voltaram-se contra Ele como cães raivosos e ali descarregaram todas as suas iras e raivas. Ali todos à porfia lhe dão bofetões e pescoções; ali cospem com suas infernais bocas naquele divino rosto; ali lhe cobrem os olhos com um pano, dando-lhe bofetadas no rosto e brincam com Ele, dizendo: “Adivinha quem te bateu”. Ó maravilhosa humildade e paciência do Filho de Deus! Ó formosura dos anjos! Rosto era esse para cuspir nele? Para o recanto mais desprezado costumam os homens virar o rosto quando querem cuspir e em todo esse palácio não se achou outro lugar mais desprezado do que teu rosto para cuspir nele? Como te não humilhas com este exemplo, tu que és terra e cinza?

Depois disto, considera os trabalhos que o Salvador passou toda aquela noite dolorosa, porque os soldados que o guardavam escarneciam dele (como diz S. Lucas) e tomavam como meio para vencer o sono da noite o estar zombando e brincando com o Senhor da Majestade. Olha, pois, ó minha alma, como teu dulcíssimo Esposo está posto como alvo às setas de tantos golpes e bofetadas como ali lhe davam. Ó noite cruel! Ó noite desassossegada, na qual, ó meu bom Jesus, não dormias, nem dormiam os que tinham por descanso atormentar-te! A noite foi ordenada para que nela todas as criaturas tomassem repouso e descansassem os sentidos e membros cansados dos trabalhos do dia; e esta tomam agora os maus para te atormentar todos os membros e sentidos, ferindo- teu corpo, afligindo tua alma, atando tuas mãos, esbofeteando o teu rosto, cuspindo o teu semblante, atormentando-te os ouvidos, para que no tempo em que todos os membros costumam descansar, todos eles em ti penassem e trabalhassem. Que matinas estas tão diferentes das que naquela hora te cantariam os coros dos anjos no céu! Lá dizem: Santo, santo; cá dizem: morra, morra, crucifica-o, crucifica-o. Ó anjos do paraíso, que umas e outras vozes ouvis: que sentíeis em vendo tão maltratado na terra Aquele a quem vós com tanta reverência tratais no céu? Que sentíeis em vendo que Deus tais coisas padecia pelos próprios que tais coisas faziam? Quem jamais ouviu tal maneira de caridade, que padeça alguém morte por livrar da morte o mesmo que lha dá?

Cresceram sobre isto os trabalhos daquela noite dolorosa com a negação de S. Pedro, aquele amigo tão familiar, aquele escolhido para ver a glória da transfiguração, aquele entre todos honrado com o principado da Igreja; esse primeiro que todos, não uma, senão três vezes, em presença do próprio Senhor, jura e perjura que o não conhece, nem sabe quem Ele é. Ó Pedro, tão mau homem é esse que aí está, que por tão grande vergonha tens o haveres sequer conhecido? Olha que isso é condená-lo tu primeiro que os pontífices, pois dás a entender que Ele seja pessoa tal, que tu mesmo te desonras de conhecê-lo. POIS QUE MAIOR INJÚRIA PODE HAVER QUE ESSA? Virou-se então o Salvador, e olhou para Pedro; vão-se-lhe os olhos trás aquela ovelha que se lhe havia perdido. Ó vista de maravilhosa virtude! Ó vista calada, mas grandemente significativa! Bem entendeu Pedro a linguagem e as vozes daquela vista, pois as do galo não bastaram para despertá-lo, e estas sim.

Mas não somente falam, senão também obram os olhos de Cristo, e as lágrimas de Pedro o manifestam, as quais não tanto dos olhos de Pedro quanto dos olhos de Cristo manaram.

Depois de todas estas injúrias considera os açoites que o Salvador padeceu na coluna; porque o juiz, visto não poder aplacar a fúria daquelas feras infernais, determinou fazer nele um tão famoso castigo que bastasse para satisfazer a raiva daqueles corações tão cruéis, para que, contentes com isto, deixassem de pedir a morte dele. Entra pois agora, minha alma, com o espírito, no pretório de Pilatos, e leva contigo preparadas as lágrimas, que bem mister serão elas para o que ali verás e ouvirás. Olha como aqueles cruéis e vis carniceiros despem o Salvador de suas vestiduras com tanta desumanidade e como Ele se deixa despir delas com tanta humildade, sem abrir a boca, nem responder palavra a tantas descortesias como ali lhe fariam. Olha como depois atam aquele santo corpo a uma coluna para que assim o pudessem ferir a seu bel-prazer onde e como mais quisessem. Olha quão sozinho estava o Senhor dos anjos entre tão cruéis verdugos, sem ter de sua parte nem padrinhos, nem veladores que fizessem por Ele, nem sequer olhos que dele se compadecessem. Olha como logo começam eles com grandíssima crueldade a descarregar os seus látegos e disciplinas sobre aquelas carnes delicadíssimas e como se ajuntam açoites sobre açoites, chagas sobre chagas e feridas sobre feridas. Ali logo verias cingir-se aquele sacratíssimo corpo de equimoses, rasgar-se a pele, rebentar o sangue e correr a fios por todas as partes. Mas, sobre tudo isto, que não seria ver aquela tão grande chaga que no meio das costas estaria aberta, onde principalmente incidiam os golpes!

Considera depois como, acabados os açoites, o Senhor se cobriria, e como andaria por todo aquele pretório buscando suas vestes em presença daqueles cruéis carniceiros, sem que ninguém o servisse, nem ajudasse, nem provesse de nenhum lavatório, nem refrigério dos que costumam dar-se aos que assim ficam chagados. Todas estas são coisas dignas de grande sentimento, agradecimento e consideração.

IV (quinta-feira) – Neste dia se há de pensar na coroação de espinhos e no Ecce Homo, e como o Salvador carregou a cruz às costas.

A consideração destes passos tão dolorosos convida-nos a Esposa no livro dos Cânticos, por estas palavras: “Saí filhas de Sião, e olhai o rei Salomão com a coroa com que o coroou sua mãe no dia do seu desposório e no dia da alegria do seu coração” Ó minha alma, que fazes? Ó meu coração, que pensas? Minha língua, como emudeceste! Ó mui dulcíssimo Salvador meu! Quando abro os olhos e olho este retábulo tão doloroso que aqui se me põe diante, o coração se me parte de dor. Pois como já não bastavam, Senhor, os açoites passados, e a morte vindoura, e tanto sangue derramado, senão que por força haviam os espinhos de tirar o sangue da cabeça que os açoites perdoaram? Pois para que sintas, minha alma, algo deste passo tão doloroso, põe primeiro ante teus olhos a imagem antiga deste Senhor, a grande excelência de suas virtudes e depois toma a olhar da maneira como aqui está. Olha a grandeza da sua beleza, a modéstia dos seus olhos, a doçura de suas palavras, a sua autoridade, a sua mansidão, a sua serenidade e aquele aspecto seu de tanta veneração.

E, depois que assim o houveres olhado e te houveres deleitado de ver tão acabada figura, volve os olhos para olhá-lo tal qual aqui o vês, coberto com aquela púrpura de escárnio, com a cana por cetro real na mão, e aquele horrível diadema na cabeça, aqueles olhos mortais, aquele rosto defunto e aquela figura toda manchada com o sangue e afeada com as salivas, que por todo o rosto estavam estendidas. Olha-o todo por dentro e por fora, o coração atravessado com dores, o corpo cheio de chagas, desamparado de seus discípulos, perseguido dos judeus, escarnecido dos soldados, desprezado dos pontífices, desdenhado do rei iníquo, acusado injustamente e desamparado de todo favor humano. E não penses isto como coisa já passada, mas como presente; não como dor alheia, mas como tua própria. Põe-te tu mesmo no lugar do que padece e olha o que sentirias se numa parte tão sensível como é a cabeça te fincassem muitos e mui agudos espinhos que penetrassem até os ossos: e, que digo? Espinhos? Uma só picada de alfinete que fosse, a custo podê-la-ias sofrer. Pois então que não sentiria aquela delicadíssima cabeça com esta espécie de tormentos?

Acabada a coroação e escárnios do Salvador, tomou-o o juiz pela mão, assim como estava, tão maltratado, e, trazendo-o à vista do povo furioso, lhes disse: “Ecce Homo” Como se dissesse: Se por inveja lhe procuráveis a morte; vede-o aqui tal que não está para se lhe ter inveja, senão dó. Temíeis que Ele se fizesse rei, vede-o aqui tão desfigurado, que mal parece homem. Destas mãos atadas, que é que temeis? A este homem açoitado, que mais lhe demandais?

Por aqui podes entender, minha alma, que tal seria então o Salvador, pois o juiz acreditou que bastava a figura que ali trazia para quebrantar o coração de tais inimigos. Em o que bem podes entender quão mau caso seja não ter um cristão compaixão das dores de Cristo, pois elas eram tais que bastavam (segundo o juiz acreditou) para abrandar uns tão feros corações.

Pois bem: como Pilatos visse que não bastavam as justiças que se haviam feito naquele santíssimo Cordeiro para amansar o furor de seus inimigos, entrou no pretório, e assentou-se no tribunal para dar final sentença naquela causa. Já estava às portas preparada a cruz, já assomava pelo alto aquela temerosa bandeira, ameaçando a cabeça do Salvador. Dada, pois, já e promulgada a sentença cruel, acrescentam os inimigos uma crueldade a outra, que foi carregar sobre aquelas costas, tão moídas e dilaceradas com os açoites passados, o madeiro da cruz. Com tudo isto, não recusou o piedoso Senhor esta carga, na qual iam todos os nossos pecados, antes a abraçou com suma caridade e obediência por nosso amor.

Caminha, pois, o inocente lsaac para o lugar do sacrifício com aquela cga tão pesada nos ombros tão fracos, seguindo-o muita gente e muitas piedosas mulheres, que com suas lágrimas o acompanhavam. Quem não havia de derramar lágrimas vendo o Rei dos anjos caminhar passo a passo com aquela carga tão pesada, tremendo-lhe os joelhos, inclinado o corpo, os olhos amortecidos, o rosto ensangüentado, com aquela grinalda na cabeça e com aqueles tão vergonhosos clamores e pregões que desferiam contra Ele.

Entretanto, minha alma, aparta um pouco os olhos deste cruel espetáculo e, com passos apressados, com angustiados gemidos, com olhos chorosos, caminha para o palácio da Virgem, e quando a ela chegares, prostrado ante seus pés, começa a lhe dizer com dolorosa voz: Ó Senhora dos anjos, Rainha do céu, porta do paraíso, advogada do mundo, refúgio dos pecadores, salvação dos justos, alegria dos santos, mestra das virtudes, espelho de limpeza, título de castidade, legado de paciência e súmula de toda perfeição. Ai de mim, Senhora minha! Para que se aguardou minha vista para esta hora? Como posso eu viver tendo visto com meus olhos o que vi? Para que são mais palavras? Deixo teu unigênito Filho e meu Senhor em mãos de seus inimigos com uma cruz às costas para nela ser justiçado.

Que sentido pode aqui alcançar até onde chegou esta dor à Virgem? Desfaleceu-lhe aqui a alma, e cobriu-se-lhe o rosto e todos os seus virginais membros de um suor de morte, que bastaria para lhe acabar a vida, se a dispensação divina não a guardasse para maior trabalho e também para maior coroa.

Caminha, pois, a Virgem em busca do Filho, dando-lhe o desejo de ver as forças que a dor lhe tirava. Ouve desde longe o ruído das armas, o tropel das gentes e o clamor dos pregões com que o iam apregoando. Logo vê brilharem os ferros das lanças e alabardas que assomavam pelo alto; lá pelo caminho as gotas e o rastro do sangue, que bastavam já para lhe mostrar os passos do Filho e guiá-la sem outra guia. Aproxima-se mais e mais do seu amado Filho e alonga os olhos escurecidos pela dor e sombra da morte, para ver (se pudesse) aquele a quem sua alma tanto amava. Ó amor e temor do coração de Maria! Por uma parte desejava vê-lo, e por outra recusava ver tão lastimável figura. Finalmente, chega já onde o pudesse ver, olham-se um ao outro aqueles dois luzeiros do céu e atravessam-se os corações com os olhos e ferem com sua vista as suas almas aflitas. As línguas estavam emudecidas, mas o coração da Mãe falava e o do Filho dulcíssimo lhe dizia: “Para que aqui vieste, minha pomba, querida minha e minha Mãe? A tua dor aumenta a minha, e os teus tormentos a mim atormentam. Volta, minha Mãe, volta para tua pousada, que ao teu pudor e pureza virginal não pertence companhia de homicidas e de ladrões. “

Essas e outras mais lastimosas palavras se falariam naqueles piedosos corações, e desta maneira se andou aquele trabalhoso caminho até o lugar da cruz.

V (sexta-feira) – Neste dia se há de contemplar o mistério da cruz e as sete palavras que o Senhor falou.

Desperta, pois, agora, minha alma, e começa a pensar o mistério da santa cruz, por cujo fruto se reparou o dano daquele venenoso fruto da árvore proibida. Olha, primeiramente, como, chegado já o Salvador a este lugar, aqueles perversos inimigos (porque mais vergonhosa lhe fosse a morte) despem-no de todas as suas vestiduras até a túnica interior, que era toda tecida de alto a baixo, sem costura alguma. Olha, pois, aqui, com quanta mansidão se deixa esfolar aquele inocentíssimo Cordeiro sem abrir a boca, nem falar palavra contra os que assim o tratavam. Antes, de mui boa vontade consentia em ser despojado de suas vestes, e ficar, com vergonha, nu, para que com elas, melhor do que com as folhas de figueira, se cobrisse a nudez em que pelo pecado caímos.

Dizem alguns doutores que, para despirem o Senhor dessa túnica, lhe tiraram com grande crueldade a coroa de espinhos que ele tinha na cabeça, e, depois de já despido, tomaram a pôr-lha, e a fincar-lhe outra vez os espinhos pelo crânio, que seria coisa de grandíssima dor. E é de crer, por certo, que usaram desta crueldade os que de outras muitas e muito estranhas usaram com Ele em todo o processo de sua Paixão, mormente dizendo o evangelista que fizeram com Ele tudo o que quiseram. E como a túnica estava pregada às chagas dos açoites e o sangue já estava gelado e colado com a própria veste, ao tempo em que lha despiram (como eram tão alheios de piedade aqueles malvados!) despegaram-lha de chofre e com tanta força, que lhe esfolaram e renovaram todas as chagas dos açoites, de tal maneira que o santo corpo ficou por todas as partes aberto e como que descascado, e feito todo uma grande chaga, que por todas as partes manava sangue.

Considera, pois, aqui, ó minha alma, a alteza da divina bondade e misericórdia, que neste mistério tão claramente resplandece; olha como Aquele que veste os céus de nuvens e os campos de flores e beleza, é aqui despojado de todas as suas vestes. Considera o frio que padeceria aquele santo corpo, estando, como estava, dilacerado e despido, não só de suas vestiduras, como também dos couros da pele e com tantas portas de chagas por todo ele abertas. E, se estando S. Pedro vestido e calçado, na noite anterior padecia frio, quanto maior o padeceria aquele delicadíssimo corpo estando tão chagado e desnudo?

Depois disto considera como o Senhor foi cravado na cruz, e a dor que padeceria ao tempo em que aqueles cravos grossos e esquinados entravam pelas mais sensíveis e mais delicadas partes do mais delicado de todos os corpos. E olha também o que a Virgem sentiria quando visse com seus olhos e ouvisse com seus ouvidos os cruéis e duros golpes que sobre aqueles membros divinais tão a miúdo caíram, porque verdadeiramente aquelas marteladas e cravos passavam as mãos ao Filho, porém à Mãe feriam o coração.

Olha como depois levantaram a cruz ao alto e a foram fincar numa cova que para isto tinham feito, e como (segundo eram cruéis os ministros), ao tempo de assentá-la, a deixaram cair de chofre, e assim se estremeceria no ar todo aquele santo corpo e mais se rasgariam os buracos dos cravos, o que seria coisa de intolerável dor.

Ó Salvador e Redentor meu, que coração haverá tão de pedra que se não parta de dor (pois neste dia se partiram as pedras) considerando o que padeces nessa cruz? Cercaram-te, Senhor, dores de morte, e sobre ti investiram todos os ventos e ondas do mar. Atolaste-te no profundo dosabismos e não achas em que te estribares. O Pai desamparou-te; que esperas, Senhor, dos homens? Os inimigos zombam de ti aos gritos, os amigos quebram-te o coração, tua alma está aflita e por meu amor não admites consolo. Duros foram, por certo, os meus pecados, e tua penitência o declara. Vejo-te, meu Rei, cosido com um madeiro; não há quem sustente o teu corpo senão três ganchos de ferro; deles pende tua sagrada carne, sem ter outro refrigério. Quando firmas o corpo nos pés, rasgam-se as feridas dos pés com os cravos que têm atravessados; quando o firmas nas mãos, rasgam-se as feridas das mãos com o peso do corpo. E a santa cabeça atormentada e enfraquecida com a coroa de espinhos, que travesseiro a sustentaria? Oh! Quão bem empregados seriam ali vossos braços, sereníssima Virgem, para este ofício, mas ali não servirão agora os vossos, senão os da cruz! Sobre eles se reclinará a sagrada cabeça quando quiser descansar, e o refrigério que deles receberá será fincarem-se mais os espinhos pelo crânio.

Cresceram as dores do Filho com a presença da Mãe, com as quais não estava o seu coração menos crucificado por dentro do que o estava o sagrado corpo por fora. Duas cruzes há para Ti, ó bom Jesus, neste dia: uma para o corpo e outra para a alma; uma é de paixão, a outra de compaixão; uma traspassa o corpo com cravos de ferro, e a outra traspassa tua alma santíssima com cravos de dor. Quem poderia, ó bom Jesus, declarar o que sentias quando consideravas as angústias daquela alma santíssima, a qual tão de certo sabias estar contigo crucificada na cruz? Quando vias

aquele piedoso coração traspassado e atravessado com gládio de dor, quando alongavas os olhos sangrentos e olhavas aquele divino rosto coberto de palidez de morte? E aquelas angústias de seu ânimo sem morte, já mais que morto? E aqueles rios de lágrimas, que de seus puríssimos olhos saíam e ouvias os gemidos que se arrancavam daquele sagrado peito espremidos com peso de tamanha dor?

Depois disto, podes considerar aquelas sete palavras que o Senhor falou na cruz. Das quais a primeira foi: “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem”.  A segunda ao ladrão. “Hoje estarás comigo no paraíso”. A terceira a sua Mãe Santíssima: “Mulher, eis aí teu filho” A quarta: “Tenho sede” A quinta: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?”. A sexta: Tudo está consumado” A sétima: “Pai em tuas mãos encomendo meu espírito”

Olha, pois, ó minha alma, com quanta caridade nestas palavras Ele encomendou ao Pai seus inimigos; com quanta misericórdia recebeu o ladrão que o confessava, com que entranhas encomendou a piedosa Mãe ao discípulo amado; com quanta sede e ardor mostrou que desejava a salvação dos homens; com quão dolorosa voz exalou sua oração e pronunciou sua tribulação ante o acatamento divino; como levou até a cabo tão perfeitamente a obediência ao Pai e como, finalmente, lhe encomendou seu espírito e se resignou todo em suas benditíssimas mãos. Por onde aparece como em cada uma destas palavras está encerrado um singular documento de virtude. Na primeira recomenda-se-nos a caridade para com os inimigos. Na segunda, a misericórdia para com os pecadores. Na terceira, a piedade para com os pais. Na quarta, o desejo da salvação do próximo. Na quinta, a oração nas tribulações e desamparos de Deus. Na sexta, a virtude da obediência e perseverança. E, na sétima, a perfeita resignação nas mãos de Deus, que é a súmula da nossa perfeição.

VI (sábado) – Neste dia se contemplará a lançada que se deu no Salvador e o descimento da cruz, com o pranto de Nossa Senhora e ofício da sepultura.

Considera, pois, como havendo já expirado o Salvador na cruz, e já se havendo cumprido o desejo daqueles cruéis inimigos, que tanto desejavam vê-lo morto, ainda depois disto não se lhes apagou a chama do seu furor, porque com tudo isto mais se quiseram vingar e encarniçar naquelas santas relíquias que ficaram, partindo-lhe as vestes e sobre elas lançando sortes, e rasgando-lhe o sagrado peito com uma lança cruel. Ó cruéis ministros! Ó corações de ferro, tão pouco vos parece o que padeceu o corpo vivo, que lhe não quereis perdoar mesmo depois de morto! Que sanha de inimizade há tão grande que se não aplaque quando vê o inimigo morto diante de si? Alçai um pouco esses cruéis olhos, e olhai aquele rosto mortal, aqueles olhos defuntos, aquele caimento de rosto e aquela palidez e sombra de morte, que, ainda que sejais mais duros que o ferro e que o diamante e que vós mesmos, vendo-o vos amansareis! Chega, pois, o ministro com a lança na mão, e atravessa-a com grande força pelos peitos desnudos do Salvador. Estremeceu-se a cruz no ar com a força do golpe, e dali manou água e sangue, com que se sanam os pecados do mundo. Ó rio que sais do paraíso e regas com tuas correntes toda a superfície da terra! Ó chaga do lado precioso, feita mais com o amor dos homens do que com o ferro da lança cruel! Ó porta do céu; janela do paraíso, lugar de refúgio, torre de fortaleza, santuário dos justos, sepultura de peregrinos, ninho das pombas singelas e leito florido da esposa de Salomão! Deus te salve, chaga do lado precioso, que chagas os devotos corações; ferida que feres as almas dos justos; rosa de inefável beleza; rubi de preço inestimável; entrada para o coração de Cristo, testemunho de seu amor e penhor da vida perdurável!

Depois disto considera como naquele mesmo dia à tarde chegaram aqueles dois santos varões, José e Nicodemos, e, arrimadas suas escadas à cruz, desceram em braços o corpo do Salvador. Como viu que, acabada já a tormenta da Paixão, chegava o sagrado corpo à terra, prepara-se a Virgem para lhe dar em seus peitos porto seguro, e recebê-lo dos braços da cruz nos seus. Pede, pois, com grande humildade àquela nobre gente, que, pois não se havia despedido de seu Filho, nem recebido dele os derradeiros abraços na cruz ao tempo de sua partida, que a deixem agora chegar a Ele e não queiram que por todas as partes cresça o seu desconsolo, se, havendo-lho os inimigos tirado por uma porta vivo, morto lho tirem agora por outra os amigos.

E quando a Virgem o teve e seus braços, que língua poderá explicar o que ela sentiu? O anjos da paz, chorai com esta Sagrada Virgem; chorai, céus; chorai, estrelas do céu, e todas as criaturas do mundo acompanhai o pranto de Maria! Abraça-se a Mãe com o corpo dilacerado, aperta-o fortemente em seus peitos (só para isto lhe restavam forças), mete o rosto entre os espinhos da sagrada cabeça, juntam-se rosto com rosto, tinge-se o rosto da sacratíssima Mãe com o sangue do Filho, e rega-se o do Filho com lágrimas da Mãe. Ó doce Mãe! É esse, porventura, o vosso dulcíssimo Filho?

E esse aquele que concebeste com tanta glória e que deste à luz com tanta alegria? Pois que é feito dos vossos gozos passados? Aonde foram as vossas alegrias antigas? Onde está aquele espelho de formosura em que vos miráveis? Choravam todos os que presentes estavam; choravam aquelas santas mulheres, aqueles nobres varões; chorava o céu e a terra, e todas as criaturas acompanhavam as lágrimas da Virgem. Chorava outrossim o santo evangelista e, abraçado com o corpo de seu Mestre, dizia: Ó bom Mestre e Senhor meu! Quem já agora me ensinará daqui em diante? A quem irei com minhas dúvidas? Nos peitos de quem descansarei? Quem me dará parte dos segredos do céu? Que mudança foi tão estranha? Ontem à noite tiveste-me em teu sagrado peito dando-me alegria e vida, e agora eu te pago esse tão grande benefício tendo-te nos meus morto? Este é o rosto que eu vi transfigurado no Monte Tabor? Esta aquela figura mais clara que o sol de meio-dia?

Chorava também aquela santa pecadora, e, abraçada com os pés do Salvador, dizia: Ó lume de meus olhos e remédio de minha alma! Se eu me vir fatigada dos pecados, quem me receberá? Quem curará as minhas chagas? Quem responderá por mim? Quem me defenderá dos fariseus? Oh! Quão de outra maneira tive eu estes pés e os lavei quando neles me recebeste! Ó amado de minhas entranhas, quem me dera agora morrer contigo! Ó vida de minha alma! Como posso dizer que te amo, pois estou viva tendo-te morto diante de meus olhos?

Desta maneira chorava e se lamentava toda aquela santa companhia, regando e lavando com lágrimas o corpo sagrado. Chegada já, pois, a hora da sepultura, envolvem o santo corpo num lençol limpo, atam-lhe o rosto com um sudário, e, posto em cima de um leito, caminham com Ele para o lugar do monumento. O sepulcro cobriu-se com uma lousa e o coração da Mãe com uma escura névoa de tristeza. Ali se despede ela outra vez de seu Filho; ali começa de novo a sentir a sua soledade; ali se vê já destituída de todo o seu bem; ali lhe fica o coração sepultado onde ficara o seu tesouro.

VII (domingo) – Neste dia poderás pensar a descida do Senhor ao limbo e o aparecimento a Nossa Senhora e a S. Madalena e aos discípulos. E depois o mistério da sua gloriosa ascensão.

Quanto ao primeiro, considera quão grande seria a alegria que aqueles Santos Padres do limbo receberiam neste dia com a visitação e presença do seu Libertador e que graças e louvores lhe dariam por esta tão desejada e esperada salvação. Dizem os que voltam das Índias Orientais à Espanha que por bem empregado têm todo o trabalho da navegação passada pela alegria que recebem no dia em que voltam à sua terra. Pois se isto faz a navegação e desterro de um ano ou dois, que faria o desterro de três ou quatro mil anos, no dia em que eles recebessem tão grande salvação e viessem a tomar porto na terra dos viventes?

Considera também a alegria que a sacratíssima Virgem receberia nesse dia com a visita do Filho ressuscitado, pois é certo que, assim como Ela foi a que mais sentiu as dores da sua Paixão, assim também foi a que mais gozou da alegria da sua ressurreição. Pois, que sentiria ela quando visse diante de si seu Filho vivo e glorioso, acompanhado de todos aqueles Santos Padres que com Ele ressuscitaram? Que faria? Que diria? Quais seriam seus abraços e beijos e as lágrimas de seus olhos piedosos? E os desejos de ir-se atrás dele, se lhe fosse concedido?

Considera a alegria daquelas santas Marias, especialmente daquela que perseverava chorando junto do sepulcro, quando visse o amado de sua alma e se derrubasse a seus pés e achasse ressuscitado e vivo aquele a quem buscava e desejava ver sequer morto; e olha bem que, depois da Mãe, àquela apareceu. Ele, primeiro, que mais amou, mais perseverou, mais chorou e mais solicitamente o buscou, para que assim tenhas por certo que acharás a Deus se com estas mesmas lágrimas e diligências o buscares.

Considera a maneira como Ele apareceu em hábito de peregrino aos discípulos que iam a Emaús olha quão afável se lhes mostrou, quão familiarmente os acompanhou, quão docemente se lhes dissimulou e, ao cabo, quão amorosamente se lhes descobriu e os deixou com todo o mel e a suavidade nos lábios; sejam, pois, tais tuas conversas quais eram as destes, trata com dor e sentimento o que tratavam estes (que eram as dores e trabalhos de Cristo) e tem por certo que te não faltará a sua presença e companhia, se sempre tiveres esta memória.

Acerca do mistério da Ascensão considera primeiramente como dilatou o Senhor esta subida aos céus por espaço de quarenta dias, nos quais apareceu muitas vezes aos seus discípulos e os ensinava e conversava com eles do Reino de Deus. De maneira que não quis subir aos céus, nem apartar-se deles, enquanto os não deixou tais que pudessem com o espírito subir ao céu com Ele. Donde verás que àqueles desamparam muitas vezes a presença corporal de Cristo (isto é, a consolação sensível da devoção), que já podem com o espírito voar ao alto e mais seguros estão do perigo. No que maravilhosamente resplandece a providência de Deus e a maneira que tem em tratar os seus em diversos tempos; como anima os fracos e exercita os fortes; dá leite aos pequeninos e desmama os grandes; consola uns e prova os outros, e assim trata cada um segundo o grau do seu aproveitamento. Por onde, nem o amimado tem por que presumir, pois o mimo é argumento de fraqueza, nem o desconsolado por que desfalecer, pois isto é muitas vezes indício de fortaleza.

Em presença dos discípulos, e vendo-o eles, subiu ao céu, porque eles haviam de ser testemunhas destes mistérios, e nenhum é melhor testemunha das obras de Deus do que aquele que as sabe por experiência. Se deveras queres saber como Deus é bom, quão doce e quão suave para com os seus, quanta seja a virtude e eficácia da sua graça, do seu amor, da sua providência e das suas consolações, pergunta-o aos que o hão provado, que disso te darão esses suficientíssimo testemunho. Quis também que eles o vissem subir aos céus para que o seguissem com os olhos e com o espírito, para que sentissem a sua partida, para que lhes fizesse soledade a sua ausência, porque este era o mais conveniente preparo para receber a sua graça. Pediu Eliseu a Elias o seu espírito, e o bom Mestre lhe respondeu: “Se vires quando eu me parto de ti, será o que pediste”. Pois herdeiros serão do Espírito de Cristo aqueles a quem o amor fizer sentir a partida de Cristo, os que lhe sentirem a ausência e ficarem neste desterro suspirando sempre pela sua presença. Assim o sentia aquele santo varão que dizia: “Foste meu consolador e não te despediste de mim; indo por teu caminho abençoaste os teus, e não o vi. Os anjos prometeram que voltarias, e não o ouvi, etc.”

E qual não seria a soledade, o sentimento, as vozes e as lágrimas da sacratíssima Virgem, do discípulo amado e da santa Madalena e de todos os apóstolos, quando vissem ir-se-lhes e desaparecer-lhes dos olhos aquele que tão roubados lhes tinha os corações? e, com tudo isto, dizem que eles voltaram a Jerusalém com grande gozo pelo muito que o amavam. Porque o mesmo amor que tanto lhes fazia sentir a sua partida, por outra parte os fazia regozijar-se da sua glória, porque o verdadeiro amor não se busca senão ao que ama.

Resta considerar com quanta glória, com que alegria e com que vozes e louvores seria aquele nobre triunfador recebido na cidade soberana, qual seria a festa e a recepção que lhe fariam, que seria ver ali, ajuntados em um, homens e anjos e todos, a uma, caminharem para aquela nobre cidade, povoarem aqueles assentos desertos de tantos anos, subir sobre todos aquela sacratíssima humanidade e assentar-se à destra do Pai. Tudo é muito de considerar para que se veja quão bem empregados são os trabalhos por amor de Deus, e como aquele que se humilhou e padeceu mais do que todas as criaturas é aqui engrandecido e alevantado sobre todas elas, para que por aqui entendam os amantes da verdadeira glória o caminho que hão de levar para a alcançar, que é descer para subir e pôr-se debaixo de todos para ser alevantado sobre todos.

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