Filha de um tempo em que os reis eram as pessoas mais qualificadas, Clara usa à vontade esse título para Jesus Cristo, o seu amado Rei dos reis. Mas nunca deixa de lembrar que ele não é rei deste mundo que passa, que felizes no seu Reino são os pobres, e augura que a rainha, esposa nobilíssima, viva sempre na mais alta pobreza. Clara vive o Reino interior, que transforma o mundo. Aproveita amplamente os valores simbólicos da mensagem bíblica.
No Reino de Jesus Cristo, somos um povo de reis, sacerdotes e profetas, porque todos somos outros Cristos. O Cristo que encontramos lá dentro e colocamos atuante neste mundo é rei. Todos precisam ter essa oportunidade de viver a realeza. Então, precisamos saber em que ela consiste.
O Reino é sempre um desafio, porque estamos em uma situação concreta em que sabemos que ele já começou, mas ainda não é pleno. Que, em muitos lugares e para muitas pessoas, nem existe.
O Reino não é deste mundo
Reino é um “estado”, isto é, uma situação ampla que envolve toda a vida das pessoas. Nós estamos dentro dele: “Nele existimos, nos movemos e somos”. Mas Jesus disse que o seu Reino não era deste mundo, porque, embora esteja presente, ultrapassa os seus limites e a sua plenitude só será dada por Deus numa situação futura. Sai de dentro de cada um de nós e não será pleno se os outros não forem plenos.
Jesus fez questão de mostrar que sua linguagem era simbólica. Por suas parábolas, mostra que não se tratava de um reino com a força do poder sobre os outros. Clara teve uma consciência agura de tudo isso quando disse a Inês de Praga, logo na primeira carta: “Creio firmemente que sabeis que o reino dos céus não é prometido e dado pelo Senhor senão aos pobres…” (1CtIn 25)… “sabeis que é mais fácil o camelo passar pelo buraco da agulha do que o rico subir ao reino dos céus”…(1CtIn 28).
Na segunda carta ela voltou a insistir: “…em vez dos bens terrenos e transitórios, você vai ter parte na glória do reino celeste eternamente, para sempre, vai ter bens eternos em vez dos perecedores, e viverá pelos séculos dos séculos…” (2CtIn 23). Mas ela não pensava apenas em um reino na vida futura, porque sinsistiu muitas vezes na afirmação de que Inês já possuía o Rei do reino celestial: “Já estáis tomada pelos abraços daquele que ornou vosso peito com pedras preciosas e colocou em vossas orelhas pérolas inestimáveis” (1CtIn 10). Ela, que não queria saber de nenhuma posse, quer possuir o Reino: “Você… vai possuir algo que, mesmo comparado com as outras posses deste mundo, será mais fortemente seu… ” (3CtIn 26). De fato, já tinha dito que o tesouro “está escondido no campo e nos corações dos homens” (3CtIn 7).
Nós já o vivemos como um caminho
Nossa palavra Rei, que passou a designar um governante, uma pessoa em categoria elevada, lembra, ao pé da letra, um pastor. Reger, no seu primeiro sentido, é conduzir as ovelhas ao seu pasto e trazê-las todas de volta para casa. Jesus Cristo é aquele que conduz com segurança todo ser humano para chegar à vida em plenitude. O espaço e o tempo dessa caminhada são interiores: trata-se da realização da pessoa, de como cada um descobre, conhece e faz valer o indivíduo único que lhe foi dado ser. Jesus Cristo é o rei desse “processo de individuação”. É ele quem sabe conduzir-nos pelos caminhos que levam à plenitude do eu interior.
Clara de Assis falou amplamente no caminho, que é ir vivendo progressivamente o Cristo interior: “O Filho de Deus fez-se para nós o Caminho” (cf. Jo 14,6)… Depois de ter aberto com essa lembrança a grande reflexão do seu Testamento, vai concluí-lo exortando: “No Senhor Jesus Cristo, aconselho e admoesto a todas as minhas irmãs, presentes e futuras, que sempre se empenhem em seguir o caminho da santa simplicidade, da humildade, da pobreza e também uma vida honesta e santa, como apresndemos de Cristo e de nosso bem-aventurado Pai Francisco desde o início de nossa conversão” (TSC 56-57). E acrescenta: “E como é estreito o caminho e apertada a porta por onde se vai e se entra na vida, são poucos os que por aí passam e entram. E se há alguns que nele andam por um tempo, são pouquíssimos os que nele perseveram. Mas felizes são aqueles a quem foi dado andar por ele e perseverar até o fim” (TSC 71-73).
Na sua Bênção, fica bem claro qual é o reino que ela deseja para todas as irmãs: ele se estende pela terra e pelo céu. Ela pede que Deus cuide das Irmãs “na terra, fazendo-as crescer na graça e em virtude entre seus servos e servas na sua Igreja militante; no céu, exaltando-as e glorificando-as na Igreja triunfante entre os seus santos e santas” (BSC 9-10).
Sua compreensão de um reino vivido a caminho é constante principalmente no Testamento, que vai concluir com um: “Dobro os joelhos…para que… o Senhor que deu o bom começo dê o crescimento e também a perseverança até o fim” (TSC 77-78). Mesmo da pobreza ela fala sempre como de um caminho; “descivar-se da pobreza… Nem o filho de Deus nem Francisco se desviaram…” (TSC 33-36; cf. 43.46). Em trechos das cartas, como o impressionante louvor de Cristo da 4ª carta, fica evidente que ela tinha trilhado ardorosamente esse caminho. Se não estivermos caminhando, a vida estará passando por nós e se escoando entre nossas mãos.
Fonte: Frei José Carlos Pedroso, OFMcap – O Cristo de Clara