O Amor que salva

Homilia Arcebispo Pierbattista Pizzaballa na Solenidade do Perdão de Assis - 2023
2022-07-30-porciuncula

Experiência espiritual de São Francisco,

Momento no qual desejava que todos pudessem “ir para o Céu”, ou seja, fazer a experiência da salvação, do perdão, do encontro pacificador com o Ressuscitado.

E quis vincular este momento tão particular à memória da Santíssima Virgem, a quem é dedicada esta capela, e à sua intercessão. Ouvimos uma passagem tirada do Evangelho da Anunciação, na qual o Arcanjo Gabriel anuncia a Maria uma grande esperança: “Você conceberá um filho, você o dará à luz e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande… e o seu reino não terá fim »“ (Lc 1,31-33).

“Tu lhe chamarás Jesus”, que significa “Deus salva”. Segundo o anjo Gabriel, Jesus será um Salvador, Ele será grande e Seu Reino sobre o mundo não terá fim. É uma declaração importante, cheia de esperança, mas parece tão distante de nossa experiência.

Olhando para o que está acontecendo ao nosso redor, isto é, não nos parece que aquele Jesus reine sobre este nosso mundo, que o mundo tenha sido salvo. Se eu olhar para a realidade de onde venho, a Terra Santa, pareceria que Cristo não apenas não reina, mas também é objeto de ridículo e rejeição. Temos a mesma impressão se olharmos para o que está acontecendo no coração da Europa cristã, com as guerras.

De modo mais geral, se olharmos para o que está acontecendo no mundo, realmente não temos a impressão de que Cristo reine sobre o mundo: há tantas guerras e divisões em andamento, não apenas na Terra Santa, não apenas na Ucrânia, e eles estão aumentando continuamente. Mas não encontramos divisões apenas na política.

Nas escolas, nas famílias e nas comunidades, os conflitos e divisões parecem ser cada vez mais frequentes e generalizados. Em suma, é longa a lista de conflitos e divisões nas diversas áreas da vida. Quero simplesmente dizer que, por um lado, o anjo Gabriel anuncia o início de um novo Reino dos salvos, mas, por outro lado, vemos tanta desolação ao nosso redor, que nos induz a pensar que, afinal, o mundo não está realmente salvo, que o Reino de Cristo realmente não fez incursões na vida dos homens.

Onde está o Reino então? Como acreditar nas palavras do anjo: “e o seu reino não terá fim”?Onde está a intervenção de Deus, onde vemos Sua ação no mundo? Convenhamos: não acreditamos mais, ou não acreditamos o suficiente, na ação de Deus na história, em nossas vidas. As vicissitudes pessoais e sociais que vivemos e estamos a viver nestes últimos anos, e talvez também um certo pensamento teológico, falam-nos de um Deus que respeita a liberdade, que “contrata” para dar lugar ao homem, que sofre com a sua criatura, que compartilha a dor, que trilha os caminhos do amor ao invés do poder.

São todas coisas verdadeiras, de fato, muito verdadeiras. No entanto, arriscam-se a deter-se num aspecto e a esgotar o seu amor num sentimento de proximidade, que tudo partilha, mas nada salva. Hoje aqui em Assis, na capela de S. Maria degli Angeli, porém, nos é revelado que, em Jesus, “Deus salva”! Seu amor, sua compaixão, sua misericórdia são ativos, verdadeiros, fortes. Hoje nos é dito que seu amor não é um sentimento, mas uma decisão.

E o seu amor abre novos caminhos, intervém, pergunta, propõe, abre caminho. A passagem do Evangelho proclamado nos faz contemplar a atividade criadora e redentora de Deus. O Arcanjo Gabriel não conta a Maria uma quimera, o que ele comunica a ela não é um engano, mas o anúncio da vida verdadeira, de uma realidade que podemos experimentamos ainda hoje: é o anúncio do amor de Deus que se faz carne e que podemos tocar, que nos alcança até no abismo mais profundo de nossas solidões, que só espera nossa resposta, livre e ativa.   Este foi, afinal, o desejo de Francisco com o pedido da indulgência plenária para este lugar e neste dia: que aquele Amor que se fez carne chegasse a todos, que todos o experimentassem, que todos pudessem encontrar o Ressuscitado e experimentar a salvação. A Deus que quer salvar, corresponde Maria que quer ser mãe. Talvez nos esqueçamos disso também.

A obediência de Maria não é passividade. Estamos tão acostumados a falar e contemplar o “sim” da Virgem que às vezes pensamos que ela se limitou a aceitar a vontade de Deus, tornando-se uma espécie de mero executor dela. Maria, ao contrário, entra no projeto de Deus e o faz seu, a partilha, como demonstra a visita a Isabel. Após o anúncio do anjo, ela imediatamente se põe a caminho, para realizar o que o anjo lhe anunciou, para participar daquele desígnio de salvação, que agora também se tornou seu, e do qual ela participará, em sua própria maneira e no seu tempo. O “sim” de Maria, portanto, não deve ser lido apenas como aceitação do desígnio de Deus, mas como vontade positiva, como decisão de participar da salvação do mundo.

Por trás do “sim” de Maria, portanto, está o “sim” de tantos homens e mulheres que contribuíram para a construção do Reino de Deus no mundo, que se tornaram parte integrante da história da salvação, que não acabou, mas continua hoje, que ainda espera o nosso “sim”, a nossa participação ativa, a nossa decisão. E aqui cabe agora a todos nós nos perguntarmos: quão ativa é a nossa fé? Deixamos para os outros o desejo e o compromisso de mudar e salvar o mundo? Não corremos às vezes o risco de fazer da fé uma companhia sentimental ou, no melhor dos casos, apenas uma interpretação da realidade?  

A fé, por outro lado, é uma força de mudança. Como Francisco de Assis, não queremos apenas amar este mundo, queremos salvá-lo. Para o cristão, amar significa salvar, mesmo à custa da própria vida. O cristão não se fecha numa espécie de devoção sofisticada, não tem medo das divisões, das rejeições, das perseguições. Sua fé não falha devido à presença do mal no mundo. Pelo contrário, está constitutivamente aberto à vida do mundo, quer transformá-lo e tornar-se um ativo construtor do Reino.  

Este é, como dizia, o modo como Cristo reina no mundo, segundo as palavras do anjo: através da paixão e do amor dos crentes, através da Igreja que, apesar de tudo, ainda é aquela que continua a anunciar e propor a salvação para os homens. Não é por acaso que São Francisco quis obter o consentimento da Igreja para esta solenidade do perdão. Ele sabia que era por aquela Igreja, com todos os seus problemas e infidelidades, que em todo caso passava a graça do perdão. Esta missão de então é ainda nossa, da Igreja de hoje. Não nos percamos muito em analisar a situação dramática que vivemos. Sabemos que tempos difíceis nos esperam, mas não temos medo.

Ninguém pode separar-nos do amor de Cristo (cf. Rm 8,35), ninguém pode extinguir o nosso desejo de mudar e salvar o mundo, ninguém pode roubar-nos o sonho de uma vida diferente, ninguém pode extinguir em nós a certeza da salvação que nos alcançou e que é mais forte que qualquer outra realidade contrária.

São Francisco nos ensina que é possível. Vindos de diversas partes do mundo, viemos aqui a Assis, à Porciúncula, para reafirmar o nosso “sim” ao desígnio de salvação de Deus para nós e para as nossas respectivas comunidades, e para reafirmar o nosso compromisso com esta mudança e esta salvação, sabendo que, como disse o anjo Gabriel a Maria: “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37). “

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